terça-feira, 20 de dezembro de 2011


Oh mãe, me explica, me ensina,
Me diz, o que é feminina ?
Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria,
Que o mundo masculino, tudo me daria,
Do que eu quisesse ter.    (Gilberto Gil)

Vamos começar com um pequeno exercício reflexivo. Procure um lugar confortável para se sentar. Procure relaxar-se, respirando profundamente, com os olhos fechados. Vamos viajar um pouco no tempo. Tente se lembrar de quando era pequeno, das imagens que guardou de si mesmo. Procure a imagem mais antiga. Olhando para ela, há alguma indicação de que você era um menino ou uma menina?
Qual(is)? Se não encontrar nada significativo nesta imagem, procure outra , onde consiga perceber algum detalhe relativo a esta questão.
Quais são as vozes que você escuta, do passado, falando sobre ser menino ou menina?
O que essas vozes dizem?
Aos poucos vamos voltando desta pequena jornada. Se quiser, anote o que considerar importante de suas reflexões.
Agora, vou relatar uma experiência, já bastante conhecida.
Em uma sala, deitado em um berço, encontrava-se um pequeno bebê, de poucos meses, vestido com roupas azuis. Pessoas, uma de cada vez, eram introduzidas na sala, com a orientação de que deveriam interagir com o bebê. Sem que ninguém falasse nada, todos o ”tratavam como um menino”, levantavam-no, sacudiam, jogavam para o alto, diziam “que garotão forte, etc...”
O mesmo bebê foi então vestido com roupas cor de rosa, e as mesmas pessoas entraram novamente na sala, com a mesma orientação.
Sem perceberem que se tratava da mesma criança, trataram-na “como uma menina”: eram mais delicados, mudaram o tom de voz, embalavam-na com cuidado, diziam “que gracinha de menina, que bonitinha, etc..”

JUARES SOARES COSTA
Psiquiatra e Terapeuta Sistêmico
Diretor do Instituto de terapia de familia e comunidade de Campinas.
Fone/fax: 019xx 3242.2823

Muitas conclusões podem ser tiradas deste último exemplo, e também das reflexões iniciais. Uma delas é que aprendemos a ser homens ou mulheres. Simone de Beauvoir fez uma observação, que se tornou a raiz de todos os significados modernos de gênero, ao dizer que “não se nasce mulher“. Nem homem, poderíamos acrescentar. Afinal de contas, o queremos dizer com gênero?
“Gênero é um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas de luta.
A teoria e as práticas feministas em torno de gênero buscam explicar e transformar sistemas históricos de diferença sexual, nos quais “homens” e “mulheres” são socialmente constituídos e posicionados em relações de hierarquia e antagonismo
(Haraway, D,2004).
“Gênero é um dos mais importantes princípios organizadores da nossa sociedade. O trabalho pioneiro das feministas trouxe á tona a centralidade desse princípio na vida de homens e mulheres. A antropologia feminista vem examinando também a masculinidade através das culturas, enfatizando as variações de comportamento e atributos associados ao que é ser homem....Existe um corpo sólido de trabalhos empíricos e teóricos sob o termo“ construção social”.
É de caráter interdisciplinar e influenciado por movimentos sociais que trabalham com a dimensão sexo e gênero. A principal contribuição desses trabalhos está em apresentar os significados dos atos corporais, sexuais e reprodutivos como construções sociais, e não pertencentes (apenas) à esfera da biologia. Os estudos que argumentam a partir dessa visão, se colocam dentro de uma perspectiva histórica e comparativa, permitindo examinar as maneiras pelas quais os significados de gênero variam de cultura para cultura, e como se modificam dentro de uma determinada cultura através do tempo.”(Garcia, M. C., 1988).
Cada um de nós, à partir de seu sexo biológico, classe social, raça e cultura, pode fazer mais uma reflexão, questionando-se: “O que significa ser homem para mim?” Como é (ou era ) para meu pai e minha mãe? E para meu avô e minha avó? Com certeza todos nós vamos perceber que muita coisa mudou. E que muito permanece.
Se retomarmos o exercício de reflexão inicial, podemos observar que, sem negar a existência de um corpo biológico, cada um de nós recebe em sua família de origem uma série de ensinamentos a respeito do que é “ser homem” e “ser mulher”. E que, para o bem, e para o mal, estes nos acompanham ao longo da vida. E além do que aprendemos em nossa família de origem, temos um aprendizado que vem da vasta teia de relações que compõem nossa rede social significativa.
Vivemos em diversos tipos de redes sociais, que são organizações de pessoas, grupos ou instituições.
Maturana diz que todas as condutas humanas, já que somos seres na linguagem, surgem desde uma rede de conversações, que é a cultura a qual pertencemos. ( Zuma C, 2004).
A identidade de gênero que construímos e reconstruímos ao longo da vida, nos acompanha como um script de como devemos ser e do que esperamos do(s) demais. Se pensarmos, por exemplo, na concepção que cada um tem de família, e a relacionarmos com as questões de gênero, podemos sair de uma noção naturalista e pré-estabelecida de família, para uma noção da construção de um modelo de família para cada um de nós.
As imagens tradicionais tem influenciado com muita força a concepção social da família. Os sociólogos funcionalistas, como Parsons, tem tido muito peso em definir e difundir as características polares (Homens com capacidades instrumentais e Mulheres com capacidades expressivas), como se estas características correspondessem a essências e identidades... disse (Ravazzola C., 1990).
Quando um casal se une, cada um dos membros da dupla traz uma bagagem, da qual faz parte toda uma série de modelos relativos aos papéis masculinos e femininos. O QUE É SER MARIDO OU ESPOSA PARA CADA UM. O QUE É SER PAI OU MÃE? O QUE É SER FILHO OU FILHA? Todos os conflitos que existem na vida de um casal, ou de uma família, podem e devem ser analisados sob a lente das questões de gênero. Se pensarmos nas fases do ciclo de vida de uma família, e nas mudanças qualitativas necessárias para a passagem para a fase seguinte encontraremos inúmeros exemplos de situações de conflito que podem ser resultantes de diferentes significados que cada atribua ao mesmo evento (Carter & McGoldrick, 1995). Qual será o sentido atribuído por cada membro do casal à tarefa de separar-se da família de origem? E será que o significado de unir-se nas tarefas de educação dos filhos, nas tarefas financeiras e domésticas é o mesmo para um homem e para uma mulher?
Outro campo onde as questões de gênero são fundamentais é o modo de expressão das emoções. Vejamos um exemplo clinico: Imaginemos que um casal estavam em terapia e chegam para a sessão contando que o tratamento de infertilidade que vinham fazendo não fora bem sucedido. Ela chorava muito e Ele mostrava-se mais sereno, tentando consolá-la. Ela dizia que Ele era insensível e frio, que não se importava com Ela. Ele argumentou que estava triste, mas que achava que não adiantava nada ficar chorando, que poderia ajudar mais se ficasse mais calmo. A discussão continua com ataques e defesas. O terapeuta pergunta a Ele como costumava reagir quando recebia uma notícia triste. Ele contou que em sua família de origem, os rapazes eram incentivados pelo pai, que tinha formação a MILITAR, a “serem fortes e não se abalarem diante de desgraças, como um soldado na frente de batalha”. A conversação terapêutica continuou, com o foco dirigido para o modo como cada um deles tinha aprendido a lidar com as emoções, possibilitando a construção de um novo significado para a postura d’Ele.
A violência intra-familiar é definida como um fenômeno multicausal, e sua compreensão passa também pelas questões de gênero:
“A violência de homens contra mulheres está profundamente associada ao modo com os homens são socializados, vez que os meninos são geralmente ensinados a reprimir emoções, raiva torna-se um dos poucos sentimentos que os homens podem expressar com aprovação da sociedade, além disso, durante o processo de socialização muitos homens não desenvolvem habilidades de comunicação interpessoal adequadas às relações pautadas pelo diálogo. Podemos acrescentar a isso o fato de os meninos serem freqüentemente educados de forma a acreditar que tem o direito de esperar determinados comportamentos das mulheres, bem como de poder utilizar de abuso físico ou verbal ou qualquer outra forma de violência, caso elas não cumpram suas “obrigações” com cuidar da casa ou prover sexo.” (Acosta, F., 2003).
A abordagem sucinta que fizemos a respeito do tema, deixou propositalmente de fora inúmeros aspectos desta questão tão complexa. O que poderíamos dizer sobre gênero, se não nos limitarmos à polarização masculino/feminimo, e incluirmos as possibilidades das relações homo-eróticas? Como ficam as relações de casal e de famílias, se considerarmos as novas organizações compostas por pessoas do mesmo sexo? São perguntas e reflexões que convidamos a leitor a fazer. Mas a inclusão da perspectiva de gênero em nossa prática profissional e em nossa vida pessoal, abre perspectivas de mudanças nas relações de casais, familiares e sociais, ajudando a nos vermos e aos outros como legítimos na relação.

BIBLIOGRAFIA:
ACOSTA, F..: Homens, violência de gênero e saúde sexual e reprodutiva: um estudo sobre homens no Rio de Janeiro/Brasil; Fernando Acosta, Gary Barker - Rio de Janeiro, Instituto NOOS, 2003. CARTER, B. &MCGOLDKICK M. & COL: “As mudanças no Ciclo de Vida Familiar – Uma estrutura para a Terapia Familiar – Porto Alegre. Ed. Artes Médicas, 2ª edição,1995. GARCIA S. M. : “Conhecer os Homens à partir do gênero e para além do gênero” (pg38), in “ Homens e Masculinidades: outras palavras”. Margareth Anilha e col. São Paulo: Ecos/Ed. 34, 1998. HARAWAY D. “Gênero para um dicionário marxista: a política sexual da palavra” in Cadernos pag (22) 2004, pg 201-246. RAVAZZOLA, C.: “Las mujeres y la terapia familiar. La difícil inclusion del contexto Gênero in las terapias contextuales”. Sistemas Familiares. Ano VI, abril 1990. ZUMA, C. E. “ A visão sistêmica e a metáfora de rede social no trabalho de prevenção de violência intra-familiar em comunidades”. Nova Perspectiva Sistêmica, ano XIII, nº 23, fevereiro de 2004. 

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